terça-feira, 11 de janeiro de 2022

coeur brisé


Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.

(José Saramago)

loin.


Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
— ouve quem estiver passando —
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta.

Um jeito (Adélia Prado)

salle de miroir.


(...) e de repente, lá estava, diante de todas aquelas superfícies, que me devolviam aos olhos, todas as diferentes formas de me ver. Estavam lá, todas diante de mim, sem nenhuma necessidade de correr atrás delas. Era só começar a andar e reconhecer e me reconhecer. Em cada parede, uma diferente face, mas em todas a minha. Eu acho que já vi esse filme antes. Aí viro a esquina e deparo com uma versão alta de mim, uma versão esguia, magra, e a medida que me afasto vai se tornando mais e mais esquálida. Era uma versão fina de mim, uma versão mais magra. Parece tão nova, tão fraca. Ainda posso sentir o cinto dar mais de uma volta, nos cós das calças. E quando mais me afasto, mais longe e longe isso vai ficando, como se eu a estivesse deixando para trás. E o cinto começou a dar menos voltas. Mal tive tempo para reparar nisso, e de repente estava em um sala, onde era gritante a cena que se podia ver. Era um rosto, vermelho. Os olhos eram fundos, as olheiras saltadas. Os olhos injetados em um vermelho, eram distoantes e quase brilhavam na penumbra. O que se havia perdido, o que havia gerado um desaguar contínuo de águas naqueles olhos? Tão novo, tão cedo. Aqueles que sem saber, se jogam nisso, mal imaginam que essa dor que vem e que parece nunca ir embora, vai embora mais rápido de quando ela chegou. E do nada, o cômodo se estreitou e pareceu subir, e você já começa a falar de coisas que aconteceram ontem, como se elas fossem há muitos anos. Nas paredes, as fotos começam a dançar entre tons amarelados e a se grudarem nos vidros, e você percebe que o escorrer fino e contínuo do tempo, pelos seus dedos. Eu acho que já vi esse filme antes. A armadura já começa a dar os primeiros sinais do correr dos anos, e após a dificuldade inicial de ficar em pé, no início da existência, a dificuldade agora é ver o que se mantém em pé. Como rocha talhada ao longo de anos pelos ventos e pela água, os rosto vem sendo esculpido e rasgado por rugas e depressões, que gritam a cada imagem refletida em espelho, e com tons brancos em fios, vem te contar que os dias passam. Os olhos afundam-se em deitam em bolsas de pele, que escurecem-se com as dores, com as dívidas, e problemas e a dor de crescer. Esse filme eu já vi antes. E de repente, lá eu estava, diante de todas as superfícies que me devolviam aos olhos, todas as minhas formas de ser. Quem é esse refletido, quem é essa imagem. A progressão de dores, a soma das doses, o resumo das quedas, o brilho fraco de quem se agarra aos últimos botes salva vida. Sou eu. Esta é minha imagem. Não preciso entrar em uma sala de espelhos que deformem visualmente minha aparência. Eu já estou deformado e atingido o suficiente. Mas este filme ainda não acabou. É tempo de lavar o rosto e sentir o espelho embaçando. Um novo eu irá olhar amanhã um reflexo de tudo o que foi. O que é. E o que virá a ser. Não como nos filmes. Nem de longe.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

sans fin.



Dentro da minha pele, eu sinto além dos arrepios. Esta é a via de encontro. Não de encruzilhadas, mas de ponto de parada. É nesse ponto que sinto a convergência de coisas. Os sentimentos se entrosam, o álcool não dissolve mais nada e ainda sinto em cada centímetro de mim, a presença. Até o fim deste momento, sem saber qual é, parece tudo tão estranho, borrado, com falsas e instantâneas alegrias. E lágrimas que vem do nada. É uma magia que não sei explicar. Mas sinto dentro da minha cabeça. Frases que vem aos barrancos, em mim, tentando formar outdoors para me dizer algo que pareço já saber. É neste ponto que lá percebo que este pitstop serviu para olhar o céu negro e sem referências das estrelas. Estou só. E não há fumaça alguma que eu trague que dissolva esse sentimento. Esse incômodo, essa inquietude, pior que uma coceira de pele. Está dentro da minha pele. Está dentro de mim. Estou encarcerando minhas ideias, estou encarcerando meu eu em uma gaiola sem grades, mas sinto que estou escapando e esvaindo de mim mesmo, e sinto estar derretendo em barras paralelas, sem olhar para o sol. Ou derretendo a cera das asas, tão fracamente coladas, ao tentar chegar perto de uma estrela. Eu sinto vazio. E só. Um vácuo de ideias e de mim mesmo. Estou a olhar e contemplar a depressão e curvas das serras abaixo, e sentir o mesmo frio em minha pele. Ainda está aqui. E álcool nenhum dissolve. Ou palavras conseguem capturar o que penso. A queda é sem fim. Sem fim. Aos barrancos aos poucos eu vou sentindo, como tinta recém colocada em uma parede. Não mexa, não toque. Ainda estou tentando afixar essa nova cor. Esse novo tom. A gaiola foi recém pintada, tenha cuidado. Ainda estou encarcerando o que está entranhando e não sai de mim, por mais que eu comece a me coçar. Tal gelo, começo a me desfazer e sinto que estas grades não irão dar conta. E parece... Não ter fim. Estava tão perto da estrela! Mas o álcool não irá dissolver isso. Ainda está aqui comigo, na epiderme. Tão fracamente colocada, mas que dói da mesma forma. Estou escapando e sedimentando tudo. Parece não ter fim. Mas qual dimensão terei, ao estar no vácuo? Não há nada em que me agarrar. Estou rodopiando rápido ou lento? Não existe tempo nesta gaiola. Sinto frio ou calor? Nada sei. Não há pelo o que rezar ou pedir. Só a noção de que ainda sinto ao tocar a pele. Esta nova tinta. Esta nova concepção. Após ter quebrado o espelho. Não mexa. Não toque. Estou só, vazando pelas laterais. Sem fim, escorrendo. Um fluido vazando da ampola. Ainda sinto na minha pele.

domingo, 2 de janeiro de 2022

alors vous devez laisser couler la rivière.


deixe as águas fluírem.
deixe as águas repousarem.
deixe o rio nos levar.
deixe o rio desaguar.

por onde as águas irão fluir?
por onde pedras irão esbarrar?
por onde ela irá deixar se esvair?
por onde ela irá acabar?

em um ponto sinuoso, poderá ter desvio
em um ponto tortuoso, poderá ser visto,
em um ponto conflituoso, poderá estar arredio,
em um ponto impetuoso, poderá ser revisto.

para então, as águas descansarem
para então, as águas se encontrarem,
e meu rio seguirá em frente,
e meu rio seguirá intransparente.


un demi-sort.

Eu sinto em cada coisa que paro para observar. Cada coisa vem acrescida de uma história, de uma memória, que ativam-se em conjunto, e dão a imersão de voltar àquele ponto. Quase como uma droga. E escuto seu nome e volto à realidade. Sem cores vibrantes, sem vento no rosto e sem ângulos bonitos. Não é um clipe de música e nem as gravações de um filme. É quando me sento e puxo as fitas gravadas em minha cabeça, das coisas que aconteceram, e vejo tal qual os efeitos, o fade out de você indo. Aos poucos, desmanchando-se qual papel em água, sendo levado e consumido. Mas ao redor, ainda tem uma caneta sua, com o qual você escrevia suas contas. E vou me afundando de novo nas tranças das histórias. fade in. Você reaparece, em imagens vívidas e fortes, em alto e bom som, correndo e falando coisas que não compreendo. O efeito desaparece e abro os olhos. Era um truque da mente. Mais um. Ao acordar, de fato, aquela caneca de presente, e o gosto do café inundou-me a boca. Estava com sede e não havia percebido. A garganta seca e eu parado, observando as paisagens, e decodificando os códigos de suas respostas. As palavras quando escritas trazem cargas pela metade. Não tem a vitalidade de uma garganta as proferir, não tem o ressoar da voz para lhe dar significado. Nas escritas, trazem toda e qualquer história, toda e nenhuma explicação. Memórias são ativadas, independente de controle e o filme desenrola-se diante dos meus olhos. Não paguei para ver essa sessão. Mas é ela que estou revisitando, não pedi, a fita só veio. Só tentei dar pausa, porque reparei na camisa que você deixou em casa, e uma explosão de cores e sensações vieram com a cor e a textura da camisa. Aquele dia, parecia uma cena de clipe. Mas aí, escuto seu nome de novo, e a realidade aos poucos se decanta. Mágica triste. Cada coisa está vindo pela metade. Em nada, tenho algo pelo todo. As memórias vem fragmentadas e manchadas. Os efeitos estão fora de lugar e fora do tempo. Aí vi que estava pendurado o cordão com a cor que você gostava. Você vem e vai nas fitas, a garganta vai secando mais. A mágica está pela metade.

Kintsukuroi.

E aquele estardalhaço todo, lembrava panelas caindo no silêncio da madrugada. Foi alto, claro, tão forte. Aquele estampido todo. Claramente era algo quebrando. Mentalmente, ao pensar em algo quebrando, me vinham imagens sonoras de copos caindo. De coisas explodindo. Vidro. Argila. Plástico. Todos fadados ao desgaste. A quebra. Mas ele poderiam ser implodidos de fora. Quebrados por algo ou alguém. Que objeto direto e indireto poderia destruir a unidade de um objeto? São tantos. E no meio de tudo isso, o homem insere-se em cânforas e em objetos. Ele materializa o invisível e impalpável sentimento, em coisas físicas. E assume uma dor como algo se quebrando no interior do ser. Encara decepções como algo se partindo dentro do peito. Escreve coração quebrado para mágoas. Realmente estamos nos quebrando? Em quantos pedaços? Vai dar para consertar? É essa pergunta que me faço todos os dias. Quantas coisas quebradas em nosso interior. Quantos estardalhaços, panelas, copos... Quantas coisas quebram em nossos corpos? Não falo de ossos, não falo de articulações. Falo das dores. Das mágoas. Das nossas percepções de nós mesmos. Essa, meus caros, creio que seja a pior da dores. Independente dos corpos e das companhias, quem recebe o peso do ser no fim da noite, é o seu travesseiro. Você com você mesmo. E esta, creio que seja um dos duelos mais difíceis a serem travados. Mas precisamos materializar as coisas. Então as dores assumem um peso, talvez em quilogramas, talvez em decepções. As lágrimas se configuram em um enxurrada que lava, assoreia o leito dos olhos, já secos, desprovidos de emoção. Já se foram todas. O peito está cansado do esforço do chorar. Damos voltas e mais voltas, querendo aferir beleza e poesia às dores, acreditando que a letra da música foi feita para você, que o poema traduz instantaneamente o que se sente, o visceral, inaudível e profundo. Do tipo que faz um alvoroço, bagunça a barriga, enfraquece as pernas. E os copos vão caindo. Tal qual dias de vento forte. Cada coisa que foi depositada em urnas, é quebrada e espatifada, assim, de qual quer jeito e sem menor cuidado. Adiantou ter guardado? Era melhor ter deixado vazio? Perguntas inúteis de serem feitas, quando os cacos brilham pelo chão. Refletem a materialização (de novo) da quebra. Mas isso tudo foi dentro do ser. Não foi em um bar, não foi em um restaurante. Foi dentro de mim. O estampido forte no peito e a sensação do coração a pulsar na têmpora. Há dinamite sendo implodida de dentro para fora. Em quantos pedaços irei me despedaçar? Dá pra juntar? Colar? Estou quebrado, não ossos, não articulações. Estou quebrado em espírito, no invisível e imensurável. Não sei mais quantas metáforas ainda possuo em meu arsenal para demonstrar isso. Não sei se há remendos. Há quem diga que uma cola dá certo. Uma tinta dourada, e estarei novo, um kintsukuroi bonito. O orgulho das cicatrizes. Mas as dores ainda estão ali. As minhas percepções foram-se nas lascas perdidas com o tempo. Não sei se verei beleza na tinta ouro.  Ela irá amenizar o peso de minhas dores, no travesseiro? Quando for você com você mesmo. Com o peito cansado do chorar.
Quantas coisas mais ainda estão quebradas dentro de mim?