Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.
(José Saramago)
Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.
(José Saramago)
por onde as águas irão fluir?
por onde pedras irão esbarrar?
por onde ela irá deixar se esvair?
por onde ela irá acabar?
em um ponto sinuoso, poderá ter desvio
em um ponto tortuoso, poderá ser visto,
em um ponto conflituoso, poderá estar arredio,
em um ponto impetuoso, poderá ser revisto.
para então, as águas descansarem
para então, as águas se encontrarem,
e meu rio seguirá em frente,
e meu rio seguirá intransparente.
Eu sinto em cada coisa que paro para observar. Cada coisa vem acrescida de uma história, de uma memória, que ativam-se em conjunto, e dão a imersão de voltar àquele ponto. Quase como uma droga. E escuto seu nome e volto à realidade. Sem cores vibrantes, sem vento no rosto e sem ângulos bonitos. Não é um clipe de música e nem as gravações de um filme. É quando me sento e puxo as fitas gravadas em minha cabeça, das coisas que aconteceram, e vejo tal qual os efeitos, o fade out de você indo. Aos poucos, desmanchando-se qual papel em água, sendo levado e consumido. Mas ao redor, ainda tem uma caneta sua, com o qual você escrevia suas contas. E vou me afundando de novo nas tranças das histórias. fade in. Você reaparece, em imagens vívidas e fortes, em alto e bom som, correndo e falando coisas que não compreendo. O efeito desaparece e abro os olhos. Era um truque da mente. Mais um. Ao acordar, de fato, aquela caneca de presente, e o gosto do café inundou-me a boca. Estava com sede e não havia percebido. A garganta seca e eu parado, observando as paisagens, e decodificando os códigos de suas respostas. As palavras quando escritas trazem cargas pela metade. Não tem a vitalidade de uma garganta as proferir, não tem o ressoar da voz para lhe dar significado. Nas escritas, trazem toda e qualquer história, toda e nenhuma explicação. Memórias são ativadas, independente de controle e o filme desenrola-se diante dos meus olhos. Não paguei para ver essa sessão. Mas é ela que estou revisitando, não pedi, a fita só veio. Só tentei dar pausa, porque reparei na camisa que você deixou em casa, e uma explosão de cores e sensações vieram com a cor e a textura da camisa. Aquele dia, parecia uma cena de clipe. Mas aí, escuto seu nome de novo, e a realidade aos poucos se decanta. Mágica triste. Cada coisa está vindo pela metade. Em nada, tenho algo pelo todo. As memórias vem fragmentadas e manchadas. Os efeitos estão fora de lugar e fora do tempo. Aí vi que estava pendurado o cordão com a cor que você gostava. Você vem e vai nas fitas, a garganta vai secando mais. A mágica está pela metade.
E aquele estardalhaço todo, lembrava panelas caindo no silêncio da madrugada. Foi alto, claro, tão forte. Aquele estampido todo. Claramente era algo quebrando. Mentalmente, ao pensar em algo quebrando, me vinham imagens sonoras de copos caindo. De coisas explodindo. Vidro. Argila. Plástico. Todos fadados ao desgaste. A quebra. Mas ele poderiam ser implodidos de fora. Quebrados por algo ou alguém. Que objeto direto e indireto poderia destruir a unidade de um objeto? São tantos. E no meio de tudo isso, o homem insere-se em cânforas e em objetos. Ele materializa o invisível e impalpável sentimento, em coisas físicas. E assume uma dor como algo se quebrando no interior do ser. Encara decepções como algo se partindo dentro do peito. Escreve coração quebrado para mágoas. Realmente estamos nos quebrando? Em quantos pedaços? Vai dar para consertar? É essa pergunta que me faço todos os dias. Quantas coisas quebradas em nosso interior. Quantos estardalhaços, panelas, copos... Quantas coisas quebram em nossos corpos? Não falo de ossos, não falo de articulações. Falo das dores. Das mágoas. Das nossas percepções de nós mesmos. Essa, meus caros, creio que seja a pior da dores. Independente dos corpos e das companhias, quem recebe o peso do ser no fim da noite, é o seu travesseiro. Você com você mesmo. E esta, creio que seja um dos duelos mais difíceis a serem travados. Mas precisamos materializar as coisas. Então as dores assumem um peso, talvez em quilogramas, talvez em decepções. As lágrimas se configuram em um enxurrada que lava, assoreia o leito dos olhos, já secos, desprovidos de emoção. Já se foram todas. O peito está cansado do esforço do chorar. Damos voltas e mais voltas, querendo aferir beleza e poesia às dores, acreditando que a letra da música foi feita para você, que o poema traduz instantaneamente o que se sente, o visceral, inaudível e profundo. Do tipo que faz um alvoroço, bagunça a barriga, enfraquece as pernas. E os copos vão caindo. Tal qual dias de vento forte. Cada coisa que foi depositada em urnas, é quebrada e espatifada, assim, de qual quer jeito e sem menor cuidado. Adiantou ter guardado? Era melhor ter deixado vazio? Perguntas inúteis de serem feitas, quando os cacos brilham pelo chão. Refletem a materialização (de novo) da quebra. Mas isso tudo foi dentro do ser. Não foi em um bar, não foi em um restaurante. Foi dentro de mim. O estampido forte no peito e a sensação do coração a pulsar na têmpora. Há dinamite sendo implodida de dentro para fora. Em quantos pedaços irei me despedaçar? Dá pra juntar? Colar? Estou quebrado, não ossos, não articulações. Estou quebrado em espírito, no invisível e imensurável. Não sei mais quantas metáforas ainda possuo em meu arsenal para demonstrar isso. Não sei se há remendos. Há quem diga que uma cola dá certo. Uma tinta dourada, e estarei novo, um kintsukuroi bonito. O orgulho das cicatrizes. Mas as dores ainda estão ali. As minhas percepções foram-se nas lascas perdidas com o tempo. Não sei se verei beleza na tinta ouro. Ela irá amenizar o peso de minhas dores, no travesseiro? Quando for você com você mesmo. Com o peito cansado do chorar.
Quantas coisas mais ainda estão quebradas dentro de mim?